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Entre o Ficto e o Facto

Uma fala antológica da personagem em Matrix(1999)
Morpheus

Vamos acompanhar agora um artigo de José Castello, escritor e jornalista, autor do romance Ribamar, entre outros. Este texto Ficção e realidade foi publicado inicialmente no blog A literatura na poltrona, em janeiro de 2012, e depois foi republicado no jornal Rascunho.

Ficção e realidade

Sempre que me perguntam o que penso a respeito das relações entre a ficção e a realidade, uma primeira dúvida me vem: mas o que, afinal, é a realidade? Corro ao dicionário, que a define como “aquilo que existe efetivamente: real”. A definição não me satisfaz. Muitas coisas que, em geral, excluímos de uma visão realista do mundo — sonhos, emoções, intuições, superstições, crenças, devaneios —, sem dúvida, efetivamente existem, embora não sejam objetos materiais, mas imateriais.

A constatação me leva a considerar que a realidade, tal qual nós a entendemos, está sempre misturada com esses objetos imateriais. Talvez eles sejam a sua “cola”. Isso me leva a pensar que ela, a realidade, tem, portanto, seu lado “irreal”. Ou para usar uma palavra que me parece mais precisa: tem seu lado “ficcional”. Sempre que somos convocados a relatar nossas vidas, nós preenchemos furos, esquecimentos, vazios, incoerências, com alguma ficção. O mesmo se dá quando, pela manhã, resolvemos relatar um sonho: invariavelmente — já que sonhos são fluidos e fugidios — nós os “editamos”, isto é, preenchemos suas lacunas e falhas com elementos da imaginação e da ficção.

A própria noção do Eu está atravessada pela ficção. Quando afirmo que sou isso, ou sou aquilo, um tanto de imaginação (de ficção) entra em jogo. Até o jornalismo, reino por excelência da objetividade (fatos, nada além de fatos, dizem os repórteres), até ele está, sempre, comprometido, com soluções imaginárias ou ficcionais. Uma das mais belas demonstrações desse fato aparece em Rashomon, o clássico genial de Akira Kurosawa. No filme, várias versões de uma mesma história se superpõem, lutam entre si pelo status de Verdade, disputam a supremacia da realidade. Mas terminamos de assisti-lo sem saber, ao certo, o que “realmente aconteceu”. Tudo o que temos são partes da Verdade, isto é, realidades parciais ou em potência. Ficções: eis tudo o que temos.

Logo, pensar as relações entre realidade e ficção é, de certa forma muito sutil, pensar as relações entre a ficção e a própria ficção. De um lado, a ficção oficial guardada nos livros — a literatura. Aquele que sustenta, com certa tranqüilidade (mas apenas relativa) o seu nome. De outro, a realidade em que nos baseamos e com a qual sobrevivemos, ela também devastada pelas interferências e turbulências da ficção. A questão, portanto, é saber como a literatura (ficção contida nas narrativas literárias), segunda ficção, mais sutil e elaborada, dá conta da ficção primeira, aquela que de forma caótica encoberta e envolve as coisas do mundo real.

Daí que o escritor trabalha, inevitavelmente, sobre o fio de uma navalha — a “faca só lâmina” de que fala o poeta João Cabral. Entre uma ficção que sustenta seu nome e outra que o esconde, ou pelo menos não o expõe, entre essas duas ficções posta-se e trabalha o escritor. Suas narrativas resultam em uma espécie de jogo de ficções. Ele é como um alfaiate, que desdobra a ficção infiltrada em nossas vidas em outras ficções, mais ordenadas, bem costuradas (mais “editadas”), que resultam, por fim, em narrativas e em livros.

Creio, por isso mesmo, que a literatura é muito mais potente do que, em geral, nós imaginamos. O que ela faz? Do que é realmente capaz? A literatura descerra a grande cortina de ficções que recobre nosso mundo dito real, não para apagá-la, mas para ampliá-la. A literatura desdobra, torna mais vastas e costura essas ficções de que somos feitos. Nelas aponta novos arranjos e novas possibilidades. Abre janelas, descerra novos postos de observação, outras perspectivas e maneiras de olhar. Amplia, enfim, a ficção que já estava ali, todo o tempo, latente naquilo que chamamos de realidade.

Não existimos sem a ficção. Arrisco-me a dizer mais: somos filhos da ficção. Todo o trabalho do amadurecimento humano é a construção de uma identidade ficcional, sob a qual nós nos sustentamos para atravessar o deserto da existência. Escolhemos carreiras, parceiros amorosos, amigos; cultivamos obsessões, fobias, paixões, construímos destinos. Somos os autores de nós mesmos — ou, pelo menos (pois nosso mundo mecanizado, opressivo e dogmático sempre vai contra isso) deveríamos ser.

Não: a ficção não é sinônimo de mentira, de falsificação, de fraude. Em vez de falsificar, ela alarga e potencializa o mundo. Em vez de mentir, ela inventa novas maneiras de dizer as coisas do real. Os escritores são, apenas, mais sensíveis a isso. Eles tiram partido disso, e transformam nossa precária e sutil realidade em maravilhosas narrativas. São os escritores, enfim, que têm a coragem extrema de enfrentar a neblina do real.

Podemos também achar o texto no seguinte link: http://rascunho.com.br/ficcao-e-realidade/

A ficção seriada Matrix merece ser (re)vista pra quem quer refletir sobre Ficto/Facto

A FICÇÃO É REALIDADEtexto de Jorge Miguel Marinho, de 17/09/2015

“A vida é sonho”, considerava Calderón de La Barca, numa peça para teatro com o mesmo nome, anunciando uma espécie de alquimia simbólica que buscava instaurar a transmutação de fantasia em realidade e de realidade em fantasia. Muitos reconheceram nessa visão de mundo nuances significativas, intencionais ou não, do pensamento hindu, da mística persa e da filosofia budista. Os limites entre real e sonho se apagam e viver é percorrer o trajeto poético da ficção.

Jorge Luis Borges, que se achava mais leitor do que escritor, nos seus expressivos e singulares achados sobre leitura, insistia “que a realidade é ilusão e que a ficção é o real”.
Borges não parece estar jogando com palavras ou buscando imagens literárias quando afirma que viver é uma ilusão e que, vivendo, fazemos da ficção a realidade. Mais do que um alerta de natureza literária, trata-se de uma afirmativa de ordem filosófica que acabou por iluminar a estreita relação entre sonho e real, a ponto de o primeiro suplantar o segundo.

De algum modo e acreditando nos mistérios que regem os encontros de escritores, é bem possível que Fernando Pessoa tenha escutado, no silêncio do seu quarto solitário em Portugal, o eco das palavras de La Barca e Borges remetidas da Espanha e Argentina e tenha dado o retorno com dois versos que nasceram na Roma Antiga, passaram para as mãos dos navegadores portugueses e chegaram à voz de Caetano Veloso pela mensagem lúdica que eles contêm:

Navegar é preciso
Viver não é preciso 

O que se faz “preciso” nesse aviso poético é que o sonho, a fantasia e a aventura vividos na arte de viajar nas águas dos mares e dos rios correm e escorrem sempre para as águas da imaginação.

De fato, a ficção é realidade, não apenas por fazer parte das nossas fantasias e sonhos, mas por estar muito presente na narrativa ou na história de vida de cada um de nós. Desse modo, a ficção literária é profundamente humanizadora porque ela só se interessa pela condição humana e pelo sentido da existência coletiva. A ficção nas mais diferentes formas de expressão artística, com especial destaque para a Literatura, sempre se pergunta “o que é a vida” e acorda as eternas perguntas que estão dentro de todos nós: “de onde vim?, para onde vou?, quem sou eu?, o que faço aqui?, quem são os outros?, qual é o sentido da existência?”.

Pela expressividade da arte literária, seu poder de representação, seus lances de inquietação, descoberta e revelação, não é exagero dizer que a ficção parece mais real do que a própria realidade.

Por tais razões, não é nada desejável, em todo o território brasileiro e no universo sem fim, dizer que uma realidade literária, vivida ou imaginada e por mais absurda que seja, “não é verdade, é mera ficção”. Chamadas desse tipo ainda fazem parte do repertório de leitura de muitas pessoas e especialmente dos alunos que, mal orientados ou lendo livros que não tocam as suas emoções, consideram a Literatura como um universo paralelo, distante e afastado da realidade de fato, poemas e narrativas totalmente sem vínculos com o real.

Muitos escritores escreveram, sem a preocupação de convencer os menos avisados, apenas como tributo à ficção presente na arte, frases iluminadoras que esclarecem e implodem este mal-entendido:

A literatura torna o mundo real, dando-lhe forma e permanência. – Fernando Pessoa.

O que há de mais real para mim são as ilusões que crio com a minha pintura. – Eugène Delacroix.

E eu, como leitor entusiasmado, não perco a oportunidade e a alegria de dizer:

Só me sinto real na ilusão literária.

Como a palavra contém na raiz o seu universo de significação, ficção – do latim fictionem/fingo/fingere – quer dizer tocar com a mão, modelar na argila, fazer. O poeta, portanto, é aquele que toca, que modela, que faz, que cria a realidade com o trabalho das mãos. Apenas para lembrar simbolicamente o ato da criação, é do barro que Deus extrai a matéria para dar forma e substância ao homem. Se essa narrativa é verdadeira ou não, tal juízo não tem lugar aqui – o que importa é que, sendo ficção ou realidade, o acontecimento de fato está no imaginário de todos nós.
E, por falar em fazer, façamos um pouco de ficção da vida e façamos um pouco mais de vida da ficção.

Jorge Miguel Marinho é professor de Literatura Brasileira com pós-graduação pela Universidade de São Paulo (USP), coordenador de oficinas de criação literária, dramaturgo, roteirista, ator, pesquisador de componentes lúdicos na crítica literária com os livros Nem tudo que é sólido desmancha no ar – ensaios de peso e A convite das palavras – motivações para ler, escrever e criar, autor de livros de ficção literária, entre eles, Te dou a lua amanhã – uma biofantasia de Mário de Andrade e  Lis no peito – um livro que pede perdão, premiados com o Jabuti.

este texto também está disponível no link: http://www.plataformadoletramento.org.br/em-revista/445/a-ficcao-e-realidade.html

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