Em 2005, em razão da resolução n° 37/04 do Conselho Universitário (COUN), a UFPR ofertou as primeiras cinco vagas exclusivas para indÃgenas, que foram preenchidas a partir de processo seletivo diferenciado através do Vestibular dos Povos IndÃgenas no Paraná, esse número foi aumentado e atualmente são ofertadas dez vaga ao ano. Essas vagas são suplementares, ou seja, são criadas especificamente para o ingresso de indÃgenas e somadas à quelas que a instituição oferecer em oferta de ampla concorrência.
Mais de dez anos após criada a polÃtica institucional, o Setor Litoral é o que mais formou estudantes indÃgenas. Iniciativas como o Laboratório de Interculturalidade e Diversidade (LAID) e o Programa de Educação Tutorial (PET) IndÃgena, coordenados pela professora Ana Elisa de Castro Freitas, contribuem para a inserção e a permanência dos estudantes indÃgenas nos cursos de graduação, além de estender a discussão das temáticas indÃgenas para outros âmbitos da instituição. No total 70 indÃgenas ingressaram na UFPR, sendo que 39 deles estão regularmente matriculados em diferentes cursos de graduação na UFPR e outros 15 já se formaram e os demais não seguiram os estudos. A maior parte deles pertences à s etnias Kaingang e Guarani.
Para os estudantes indÃgenas, um dos principais desafios na vida acadêmica é conciliar as matrizes curriculares e a perspectiva etnológica indÃgena. Nesta entrevista, o Gestor ambiental Douglas Jacinto da Rosa, recém graduado pela UFPR Litoral, fala sobre a necessidade de dar maior vazão ao pensamento indÃgena e conta sua trajetória desde o ingresso na Universidade.
Douglas é da etnia Kaingang e pertence a coletividade Kaingang de Re Kuju – Campo do Meio, no municÃpio de Gentil (RS), bacia hidrográfica do Alto Uruguai, próximo a Passo Fundo (RS). Atento à necessidade de buscar os estudos fora da aldeia para ajudar o seu Povo em diferentes demandas que se configuram nas Terras IndÃgenas Kaingang, no sul do Brasil, em 2010, Douglas decidiu prestar o Vestibular dos Povos IndÃgenas no Paraná na UFPR, visando uma vaga no curso de Engenharia Ambiental. Confira sua trajetória na entrevista.
Você ingressou no curso de engenharia ambiental e depois fez a reopção por gestão ambiental, o que lhe motivou a mudar de curso?
Fiz o ensino fundamental na aldeia e depois fiz o ensino médio em um municÃpio perto da aldeia, lá soube do vestibular indÃgena, prestei o concurso e acabei passando. Escolhi o curso de engenharia ambiental por eu ter sido sempre ligado à s questões da natureza, geografia, biologia, entre outras. Fui buscar na engenharia um campo para pensar projetos de reflorestamento, proteção de nascentes e rios, elementos naturais que existem na terra indÃgena. Mas, naquele momento, a grade curricular do curso não correspondeu a essas minhas ansiedades, tÃnhamos muito cálculo, fÃsica, quÃmica, percebi que não era o que eu estava buscando.
Como você entrou em contato com o Setor Litoral da UFPR?
Quando a minha famÃlia, junto de outras matrizes familiares Kaingang, inaugura o processo de retomada por Terra Tradicional Kaingang em Re Kuju – Campo do Meio (RS), eles me demandaram ajuda na elaboração e qualificação de documentos que apresentassem nossas demandas junto a diferentes instituições do estado brasileiro e, a esses conhecimentos, eu não tinha acesso pelo curso de engenharia ambiental, em um ano no curso nunca consegui pautar a questão indÃgena. Então passei a pensar na possibilidade de mudança de curso na UFPR, foi então que outros estudantes que já estavam na UFPR me foram essenciais. Nesse sentido, a estudante indÃgena Kaingang do curso de Gestão Ambiental, Diana Nascimento, contou que muito do que eu buscava no curso de Engenharia era abordado no de Gestão Ambiental. Comecei também a participar de eventos e cheguei à conclusão de que eu deveria mudar de curso. Fui para o UFPR Litoral em 2011. E antes de mim, a Gestão Ambiental já tinha tido outros estudantes indÃgenas, isso foi provocando o curso, os professores tinham uma atenção maior à s problemáticas socioambientais que vivenciavam os Povos indÃgenas no Brasil, e aà encontrei mais subsÃdios para pensar de como a pauta ambiental se insere no direito indÃgena, especialmente no que se refere aos direitos territoriais. O que acabou me dando uma abordagem técnica muito boa e também polÃtica.
Quais são os principais desafios para um estudante universitário indÃgena?
O indÃgena tem mais dificuldade de inserção e adaptação, para muitos é a primeira vez longe de sua coletividade indÃgena, e temos que chegar na cidade e abrir conta bancária, procurar lugar para morar, ter fiador. A assistência estudantil teria que acompanhar a polÃtica de inserção indÃgena mais de perto. A universidade não pode se furtar de pensar a realidade das pessoas que ingressam nela, precisa estar atenta.
E quais são as oportunidades que a Universidade oferece?
Estar na universidade dá a possibilidade de afirmação do sujeito e de vazão do pensamento indÃgena, acho que isso é o mais caro para nós no ensino superior. Se, de alguma maneira, você consegue dar vazão da narrativa da experiência, da territorialidade, da história, da cosmologia, gradativamente você vai dar possibilidade da afirmação do pensamento indÃgena na instituição e na sociedade. Muito do que ainda temos sobre os povos indÃgenas são olhares de pessoas não indÃgenas, que escreveram sobre nós. É um outro momento que estamos vivendo, em que indÃgenas podem se tornar pesquisadores, expressando a concepção de um pensamento milenar.
Qual é a sua relação com a sua famÃlia e com a aldeia?
Durante a graduação, sempre que podia eu, voltava para a minha terra. O último ano da graduação, que é dedicado à vivência, eu já passei lá. Hoje acompanho as polÃticas públicas e trabalho junto com as lideranças das aldeias no Rio Grande do Sul. Todos os estudantes indÃgenas que estão na universidade têm uma responsabilidade com as suas famÃlias e as lideranças de sua aldeia. Eles têm o respaldo das lideranças e precisam, de alguma forma, colaborar. Porque nós, que vamos a universidade, somos uma nova possibilidade dos indÃgenas estabelecer novas relações com o Estado brasileiro e com a sociedade. Eu morava na Serrinha (RS) e depois que vim para a UFPR, a minha famÃlia se juntou a outras para fazer uma retomada de terra. Devido a isso, o contexto da minha vida mudou.
O que é uma retomada de terra?
As retomadas de terras indÃgenas são bastante conflituosas, inclusive meu irmão sofreu um atentado de morte recentemente, foi baleado, e ainda está com um projétil na altura da coluna. Esses são conflitos que acontecem em todo o Brasil, eles têm sido recorrentes no Sul e é algo que não vai parar, porque, depois da Constituição Federal 1988 e nela a previsão de nosso direito originário as nossas terras, você tem o processo da apropriação e da autodeterminação indÃgena, então, a partir da memória, da oralidade, os indÃgenas estão acionando parcelas dos antigos territórios que lhes forma tiradas violentamente com o processo colonial. Hoje, quando vamos requerer terras que foram dos nossos antepassados, há outras pessoas nessas terras e aà o conflito se estabelece.
Agora você atua no movimento indÃgena e inclusive representa seu estado no Conselho Nacional de PolÃtica Indigenista (CNPI), como foi essa inserção?
Comecei a buscar um aparato jurÃdico e administrativo para diferentes questões indÃgenas especialmente no âmbito territorial e de certa forma foi isso que foi me aproximando do movimento indÃgena, antes eu não tinha uma atuação tão direta com o esse movimento. A relação indÃgena com a terra é uma relação que a sociedade moderna não consegue perceber, talvez nunca vá conseguir compreender. Aos poucos conquistei o reconhecimento das lideranças e gradativamente comecei a fazer parte de espaços importantes dentro do movimento indÃgena, isso é recente, porque algumas lideranças, especialmente os mais velhos, têm uma certa resistências aos mais jovens, portanto essa aproximação deve ser cautelosa e principalmente com muito respeito. Por ter conquistado essa confiança, hoje represento o Rio Grande do Sul no Conselho Nacional de PolÃtica Indigenista (CNPI). Sou responsável por acompanhar a implementação de polÃticas indigenistas no Brasil. Também estou trabalhando junto com as aldeias que estão pleiteando o reconhecimento territorial e a demarcação das terras tradicionais Kaingang no Rio Grande do Sul, fizemos uma reunião e começamos a trabalhar conjuntamente para a regularização das situações. Vamos fazer um plano de Gestão Ambiental e Territorial para todas elas, nos seus devidos contextos, mas seguindo os mesmos princÃpios orientadores, esses do pensamento Kaingang na relação com a natureza e sobre natureza.